Um review histórico sobre Brumadinho

brumadinho barragem

Ao meio-dia de uma sexta-feira quente de verão, 25 de janeiro de 2019, o barulho habitual do complexo Córrego do Feijão foi interrompido por um som surdo, curto, sem aviso. Às 12h28, a barragem B1, estrutura de rejeitos da mineração, rompeu em cascata. Em segundos, uma massa espessa desceu o vale com a velocidade de quem não encontra obstáculos. O refeitório, a área administrativa e trechos de estrada desapareceram sob um mar castanho. Do alto, as primeiras imagens mostravam um traço de destruição que se alongava até o Paraopeba; no chão, pessoas corriam com a lama até a cintura, enquanto rádios chamavam por socorro. Naquele instante, o país parou de almoçar para assistir a uma tragédia anunciada e, mesmo assim, inimaginável.

O que se seguiu foi uma rarefação do tempo. Nas primeiras horas, o instinto foi encontrar gente. Bombeiros, funcionários e moradores improvisaram salvamentos, puxando corpos e sobreviventes com cordas, pedaços de madeira, braços. O vulto da lama, porém, era mais rápido do que qualquer plano de fuga. Para quem estava no refeitório, a distância até um ponto seguro podia ser medida em metros, mas o intervalo entre o primeiro estalo e o impacto não cabia em relógio. A pergunta que dominou o ar não foi técnica; foi humana: por que a sirene não tocou? O silêncio virou símbolo, lembrando que sistemas de alerta são tão bons quanto a sua capacidade de funcionar no minuto certo e que alinhar pessoas, rotas, exercícios e tecnologia é parte da segurança, não um acessório.

Seis anos depois, a palavra Brumadinho não precisa de sobrenome. Ela evoca um lugar, um rio, uma dor que ganhou nome próprio — as joias, como as famílias chamam os seus. Evoca também uma discussão mais ampla sobre como um país lida com seu ciclo mineral e com os riscos que ele impõe. Para entender por que aquele rompimento virou marco, é preciso olhar o antes, o durante e o depois.

Antes do rompimento

Minas Gerais havia sido ferida quatro anos antes com o colapso do Fundão, em Mariana. Ali, o Brasil conheceu de forma didática o que uma barragem de rejeitos é capaz de fazer quando falha. Brumadinho, portanto, já nasce dentro de um território traumatizado. Havia promessas de revisão de procedimentos, mudança de cultura, mais instrumentos de monitoramento, auditorias externas, aperfeiçoamento de planos de emergência. No papel, muita coisa avançou. No terreno, a realidade era de barragens antigas, construídas com métodos de época, adaptadas em tempos diferentes, com geometrias e materiais que respondem de maneiras próprias às chuvas, ao rebaixamento de nível d’água, a variações de carga.

A barragem B1 foi erguida pelo método a montante — mais barato e, por isso mesmo, muito comum em décadas passadas. O método se baseia em ampliar a estrutura apoiando-se no próprio rejeito consolidado, o que funciona até certo ponto e até que as variáveis de umidade, densidade e drenagem se alinhem para cobrar seu preço. Não há romance nisso: é engenharia. Mas, como toda engenharia, depende de premissas e da honestidade de revisá-las. A cadeia de decisões que sustenta uma barragem é feita de laudos, inspeções, sensores, fotografias, perfurações, e também de escolhas sobre onde colocar a próxima pá de terra, o próximo dreno, o próximo talude. Quando a realidade contraria as planilhas, a prudência precisa falar mais alto que a pressa.

Em Brumadinho, havia sinais dispersos. Relatórios apontavam condicionantes, a comunidade desconfiava, trabalhadores sabiam de anomalias pequenas, típicas de estruturas desse tipo. Nada que, isoladamente, soasse como uma sentença. É assim, aliás, que tragédias acontecem: pela soma de sinais que, se conectados, mudariam a atitude de todos; se ignorados, viram prelúdio.

O dia em que o chão cedeu

Catástrofe socioambiental provocada pelo rompimento de barragem da Vale em Brumadinho - MG

O instante do rompimento é menos cinematográfico do que parece à distância. Não houve explosão, apenas um colapso por dentro, o que engenheiros chamam de liquefação — quando o material deixa de se comportar como sólido e passa a fluir, mesmo sem abalo sísmico. A partir dali, a falha retrogradiu como quem desfaz um zíper, e a onda de rejeitos seguiu a gravidade. A geografia fez o resto. No caminho, estruturas foram arrancadas, pontes cederam, veículos foram arrastados como se fossem brinquedos. A lama alcançou o leito do Paraopeba, tingindo o rio e, com ele, o cotidiano de dezenas de municípios abaixo.

Houve, naquele dia, um descompasso entre o tamanho do desastre e a capacidade de reagir. Filosoficamente, o país sabe que depende da mineração. Praticamente, não se preparou para o pior cenário. A defesa civil, combativa e incansável, mobilizou tudo o que tinha. Helicópteros, cães farejadores, mapas, drones, linhas de vida feitas com cabos e braços. As equipes de resgate, lideradas pelos bombeiros de Minas, passaram a viver numa escala que retirou qualquer conforto da rotina. Cada corpo encontrado era um capítulo encerrado para uma família; cada dia sem identidades novas era um vazio que também doía.

As famílias fizeram da busca uma missão. Criaram redes, pressionaram autoridades, acompanharam perícias, organizaram vigílias. O país, que tem a tentação de esquecer, foi lembrado todos os meses por um calendário civil de memória. Os nomes das vítimas ocuparam faixas, camisetas, postes, flores. E, no vocabulário, a palavra joia não foi escolhida à toa: ela sintetiza amor, valor, a ideia de algo único que se quer guardado para sempre.

Rio, comunidades, vida interrompida

Quando a lama alcança um rio, ela não está “apenas” poluindo água. Está reescrevendo a economia de um lugar. Pescadores amanhecem sem ofício, agricultores veem a irrigação suspensa, ribeirinhos perdem o lazer e a alimentação que brotava das margens. O Paraopeba virou medidor diário do que significa um desastre ambiental. Sedimentos carregados por quilômetros, alterações físico-químicas, incertezas sobre potabilidade, caminhões-pipa substituindo torneiras. Crianças cresceram ouvindo que a água “está proibida”.

Há danos que se medem com régua e outros que escorrem pelas frestas da estatística. A interrupção de uma escola por semanas, o medo de chuva forte, a insônia de quem mora perto de outra barragem, o estigma sobre a fruta que nasce na beira do rio. Povos indígenas que viviam do território viram-se, de repente, com metade do mundo interditado. Famílias acostumadas a pescar à tarde passaram a conviver com avisos, barreiras e um léxico técnico que antes não fazia parte da vida: turbidez, dragagem, remediação, monitoramento.

A saúde sente primeiro e por mais tempo. Não é só a pele em contato com a água turva, é o corpo respondendo a um ambiente que deixou de ser confiável. E a cabeça, sobretudo, tentando reordenar sentido por trás do imponderável. Muitos programas foram criados — auxílio financeiro emergencial, acompanhamento psicológico, cestas, consultas, perícias —, e nada disso devolve o que foi arrancado. Serve, quando muito, para manter de pé quem precisa atravessar a fase mais dura.

Barragem VI,  Mina Córrego do Feijão -MG

O labirinto da responsabilização

Tragédias desse porte abrem frentes jurídicas que caminham em tempos diferentes. Há o campo penal, que busca responder por homicídios e crimes ambientais cometidos por pessoas físicas e jurídicas. Há o campo cível, onde se discutem indenizações, reparações coletivas, restauração ambiental, projetos de interesse público. Há ainda instâncias administrativas, conselhos, órgãos reguladores. Tudo se atropela, quase sempre.

Em Minas, o acordo firmado entre a empresa e o estado foi apresentado como um marco. Volumoso, direcionado a obras, políticas públicas e programas de reparação socioeconômica, tornou-se ponto de apoio para prefeitos, secretarias e comunidades que precisavam de respostas práticas. Mas acordos não apagam obrigações individuais, tampouco curam, por decreto, a desconfiança. As famílias queriam e querem mais: queriam ouvir de cada responsável o que poderia ter sido feito de maneira diferente. Queriam ver, na Justiça, a tradução do que todos sentiram naquela tarde de janeiro.

No estrangeiro, consultorias e certificadoras que emitiram pareceres sobre a consistência da barragem passaram a ser cobradas também, sob a lógica de que segurança não é declaração, é verificação. Em paralelo, as comissões parlamentares produziram relatórios, e órgãos de controle, relatórios técnicos. O labirinto jurídico avança aos solavancos, entre recursos, decisões, idas e vindas processuais. Enquanto isso, os nomes permanecem. É essa permanência que sustenta a memória e impede que o caso se dissolva no costumeiro esquecimento burocrático.

O que mudou na engenharia, na gestão e na lei

Há mudanças que se veem de longe, como a proibição do método a montante e a exigência de descaracterização de estruturas antigas — tirar de vez a natureza de barragem de rejeitos e dar outro uso ao lugar. Há outras menos fotogênicas, porém determinantes: reforço em drenagens, controle de nível d’água, campanhas geotécnicas mais densas, redes de piezômetros e inclinômetros com leitura remota, inspeções independentes com autonomia real, simulações de cenários de ruptura que partem do pior caso, não do caso médio.

Planos de Ação de Emergência em Barragens de Mineração, que antes dormiam em gavetas, passaram a ser testados com sirenes de verdade e participação da comunidade. Rotas de fuga foram redesenhadas considerando pessoas idosas, crianças, tempo de reação, obstáculos reais. A Defesa Civil se entrosou melhor com as empresas e com os municípios. Ferramentas de transparência tornaram-se mais presentes, com mapas, relatórios e dados públicos sobre a situação de cada estrutura. Na esfera internacional, um padrão de gestão de rejeitos foi lançado como referência, pressionando o setor a adotar boas práticas em governança, projeto, operação e fechamento de mina.

Isso não significa que o risco foi abolido. Significa que passou a ser tratado com a seriedade que ele exige. Cultura de segurança não nasce num decreto; brota da soma de decisões certas, repetidas, auditadas e corrigidas quando falham. E, principalmente, de uma disposição permanente para duvidar: da própria obra, dos próprios números, da própria pressa. Em mineração, o benefício de duvidar cedo é salvar vidas depois.

Memória, luto e futuro possível

Nenhuma cidade deseja ser conhecida pelo seu pior dia. Brumadinho agora convive com duas faces: a do turismo de arte e natureza que sempre atraiu visitantes e a da lembrança que exige respeito. Em datas marcadas, famílias e bombeiros se encontram para lembrar nomes e agradecer buscas que não se encerraram de um dia para o outro. Surgiram espaços de memória, projetos de educação, exposições que tratam do tema com sobriedade, passeios guiados que ensinam sobre o rio e sobre o minério com outra perspectiva. Lembrar, aqui, não é insistir na dor por si só; é construir uma ética de não repetição.

As escolas locais incorporaram o episódio ao currículo de cidadania, engenharia, meio ambiente. Crianças que eram pequenas em 2019 hoje fazem perguntas que adultos evitavam. Nas conversas de família, a palavra prevenção perdeu a abstração e ganhou cotidiano: a sirene que precisa funcionar, o abrigo que deve estar aberto, a rota que tem de ser treinada. São gestos miúdos, aparentemente banais, que no somatório mudam o desenho de uma comunidade diante do risco.

Também mudou a maneira como a imprensa cobre o tema. Deixou de ser apenas helicóptero e imagem aérea para incluir histórias de longo curso, com acompanhamento dos atingidos, contagem de prazos, escrutínio de relatórios. As universidades criaram linhas de pesquisa, produziram teses, revisaram aulas. Jovens engenheiros formaram-se com Brumadinho no horizonte, o que não é detalhe: a cultura de uma profissão muda quando os recém-chegados aprendem a nomear seus medos.

O futuro possível, se quisermos construí-lo, precisa levar a sério as camadas de um desastre. Há a camada visível — a lama que todos viram. E há a camada discreta — as decisões que ninguém enxerga, tomadas em salas de reunião, em planilhas que não saem do computador, em inspeções que acontecem numa manhã chuvosa com meia dúzia de pessoas. É nessa camada discreta que nascem as boas e as más histórias. A diferença entre elas costuma se resumir a duas palavras: responsabilidade e coragem. Responsabilidade para admitir que as margens de segurança encolheram. Coragem para desacelerar produção, sustar operações, gastar mais quando o certo é gastar mais.

A história de Brumadinho não termina com a assinatura de um acordo nem com a inauguração de um memorial. Ela segue escrita no dia a dia de quem perdeu alguém, de quem trabalha em mina, de quem fiscaliza, de quem ensina e aprende. É um aviso aceso no mapa do Brasil, lembrando que riqueza que passa por barragens exige um país inteiro vigilante. O que aconteceu ali não foi um acidente no sentido coloquial da palavra; foi um ponto de inflexão.

Se há algo que as joias nos pedem, é simples: que cada um faça a sua parte para que o próximo alarme soe antes da lama. Que a técnica seja rigorosa, a gestão seja transparente, a fiscalização seja presente e a sociedade, exigente. Que a memória não se torne um ritual burocrático e que a pressa não seja novamente desculpa. O minério pode ser fundamento de desenvolvimento. Mas, sem o devido cuidado, pode levar junto a vida de quem dá rosto e sentido a essa palavra. Brumadinho nos lembra, todos os dias, qual caminho escolher.

 

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